Artigo escrito por Felipe Rodrigues
Alarmante, o número de 1,25 milhões de pessoas mortas anualmente em acidentes de trânsito, em todo o mundo, fez com que os países membros da ONU se comprometessem a adotar novas medidas que pudessem reduzir substancialmente esse triste panorama. O acordo foi assinado em maio de 2011 e liderado pelo secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, o qual pediu aos Estados-membros, às agências internacionais, às organizações da sociedade civil, empresários e líderes comunitários que assegurem que a Década possa gerar melhorias reais. “Juntos, poderemos salvar milhares de vidas”, completou. A comunidade internacional, 5 anos depois, aprovou a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, contendo 17 Objetivos e um total de 169 metas. O Objetivo Global número 3, o qual visa “assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades”, incorporou a seguinte meta: “Até 2020, reduzir pela metade as mortes e os ferimentos globais por acidentes em estradas”.
Automóveis e acidentes sempre caminharam lado a lado. Com a invenção do motor a combustão interna (1860) e a descoberta acerca da utilização de petróleo como combustível (1885), os veículos começaram a ser fabricados e ganhar as ruas; é claro, ainda de forma bem moderada, já deixando, entretanto, registros do perigo que a invenção poderia causar. O primeiro acidente de trânsito com morte foi registrado no dia 31 de agosto de 1869, no condado de Offaly, na Irlanda, enquanto Mary Ward e seu marido ganhavam uma carona no veículo movido a vapor fabricado por seus primos. Incrivelmente, o evento ocorreu com o carro a 6 km/h. Mary caiu do automóvel que acabou passando por cima dela. A cientista e ilustradora ainda recebeu atendimento médico, todavia não resistiu.
A Engenharia foi evoluindo e os episódios também. Em 1896, Bridget Driscoll estava em uma calçada de Londres e foi atingido e morto por um carro dirigido por Arthur Edsall. Dois anos depois, o inglês Henry Lindfield estava dirigindo quando perdeu o controle do carro ao descer uma colina. Ele atravessou uma cerca e bateu em uma árvore; teve sua perna amputada e não resistiu aos ferimentos. No Brasil, o primeiro automóvel chegou importado da Europa por Santos Dummont em 1891. O veículo era um Peugeot, motor Daimler, movido a gasolina. O carro quase não foi visto pelas ruas e diziam que a aquisição era para o pai da aviação estudar o funcionamento do motor. Outras figuras conhecidas começaram a comprar veículos e, consequentemente, os acidentes de trânsito começaram a ocorrer. José do Patrocínio e Olavo Bilac transitavam com o Serpollet, um dos primeiros automóveis fabricados pela Peugeot, pelas ruas da Tijuca – RJ. Bilac estava no comando e Patrocínio o incentivava a empreender mais velocidade, certamente, empolgado com a situação. Em determinado trecho, durante uma curva, Bilac perdeu a direção e o veículo bateu em uma árvore, posteriormente, caiu em um barranco. Por sorte, jornalista e poeta se salvaram; o veículo ficou inutilizável, porém.
A cada ano que passava, o que antes era objeto da elite passa a ser um dos principais meios de locomoção da população. Surge, também, o automobilismo, um dos esportes mais populares e perigosos do mundo, tanto que o registro do pior acidente de carro da história ocorreu durante a corrida das 24h de Le Mans, na França, em 1955. Na ocasião, O piloto Pierre Levegh, da Mercedes- Benz, tentou ultrapassar Lance Macklin, da Austin-Healy, quando o carro de Levegh capotou, voou para a arquibancada e explodiu. Estima-se que a velocidade empreendida no momento do acidente era de 240 km/h. O piloto morreu na hora e os destroços do carro atingiram os espectadores, matando 84 e ferindo mais de 70 pessoas. Após a tragédia, a Mercedes se retirou do automobilismo e só retornou na década de 80. O maior acidente da história ocorreu no Brasil e envolveu cerca de 300 carros. O engavetamento, atípico por sua grandiosidade, aconteceu na Rodovia dos Imigrantes – SP, em 2011.
Sabe-se, perfeitamente, que os acidentes de trânsito são casos de saúde pública, uma vez que acarretam cerca de 50 bilhões anuais de prejuízos, dado de 2015. Isso significa que cada brasileiro, naquele ano, desembolsou algo em torno de R$ 255,00 para custear, por meio de impostos, toda a máquina pública envolvida nesse cenário. O montante — em torno de 2,8% do PIB — poderia ser investido em outras demandas, tais como educação, saneamento básico e até mesmo na própria área da saúde.
Com número de 37.345 mortes resultantes de acidentes de trânsito em 2016 — o último ano com dados disponíveis no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde —, o Brasil ocupa o quinto lugar entre os países recordistas em mortes no trânsito, atrás somente da Índia, China, Estados Unidos e Rússia. “Esse número de 37 mil vidas perdidas em acidentes por ano é superior à população de muitas cidades brasileiras. Infelizmente, quando boa parte da população pensa em trânsito, o que vem à mente são os congestionamentos e chamada indústria da multa, mas o que temos é uma indústria da dor e da morte”, afirma Renato Campestrini, advogado, especialista em trânsito e gerente técnico do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV).
Apesar das mortes em ocorrências dessa naturalidade terem reduzido 14,8% se comparadas ao ano de 2014, o país ainda está muito longe de atingir a meta estabelecida pela ONU. As lesões causadas pelo trânsito são o principal causador de mortes entre pessoas de 5 a 29 anos. O ônus é desproporcionalmente suportado por pedestres, ciclistas e motociclistas. Especialistas alegam que enquanto não houver maior engajamento da sociedade, o Brasil não conseguirá alcançar essa meta.
As normas sociais têm um aspecto importante na sustentação das práticas diárias. Nesse sentido, adentra-se, então, ao tema educação, tão importante na construção dessas normas as quais, por consequência, podem resultar em uma mobilidade mais consciente. Por outro lado, a impunidade, principalmente pela ausência de fiscalização, consente com as imprudências e negligências praticadas rotineiramente pelos condutores. Recentemente, Deltan Dallagnol, Procurador da República, conhecido pela frondosa atuação contra a corrupção na Operação Lava-jato, por meio das redes sociais, gravou um vídeo relatando um estudo realizado nos Estados Unidos, no qual pesquisadores conseguiram correlacionar o número de multas não-pagas praticadas por Diplomatas com o índice de corrupção praticado no respectivo país de origem.
A pesquisa foi tema do artigo “Cultures of Corruption: Evidence from Diplomatic Parking Tickets”, maio/06, publicado por Fisman, R. e E. Miguel, nos Estados Unidos. O professor José Alexandre Scheinkman publicou um texto sobre a pesquisa, em 2006, na Folha de São Paulo, e fez reverberar a ideia de que a punição é um dos caminhos para corrigir as práticas sociais indevidas. “Enquanto esperamos que a atitude ante o abuso de privilégios mude no país, precisamos fazer cumprir a lei”, disse o economista. Foi revelado que representantes de países como Dinamarca, Noruega, Suécia e Canadá não deixaram de pagar uma única infração, enquanto Kuait, Sudão e Bulgária lideraram a lista de infrações não-pagas. O Brasil aparece em 29º, de um total de 146, e teve o pior índice da América Latina. “Fisman e Miguel propõem que, como os carros diplomáticos não são identificados de acordo com o país, a diferença no número de infrações reflete principalmente a atitude dos representantes em relação ao abuso de privilégios”, completou o professor.
Com o objetivo de reduzir as infrações praticadas pelos diplomatas, o prefeito Michael Bloomberg sugeriu ao Senado norte-americano que aprovassem uma lei, na qual permitia a cidade de Nova York rebocar os carros com placas diplomáticas estacionados irregularmente. O pedido foi atendido e a lei sancionada. Curiosamente, o número de infrações baixou significativamente, fazendo entender o poder dissuasório das punições.
FISCALIZAÇÃO GERA PRUDÊNCIA
A Lei nº 11.705, de 19 de junho de 2008, popularmente conhecida como Lei Seca, é considerada um sucesso pela rigidez e pelos resultados positivos após sua promulgação. É, inclusive, responsável por parte da redução dos índices de mortalidade no trânsito. Infelizmente, a taxa média nacional de fiscalização, contudo, é de um a cada 500 veículos da frota total do Brasil, no tempo em que Portugal e Espanha detêm um a cada cinco veículos fiscalizados. “Os estados que têm mais fiscalização, têm menos acidentes relacionados à combinação entre álcool e direção. Quando ele tem a sensação de que a fiscalização está presente, acaba sendo mais prudente”, explica Renato Campestrini do Observatório Nacional de Segurança Viária.
O Centro de Pesquisa e Economia do Seguro (CPES), em 2017, publicou um estudo, baseado nos dados do Sistema Único de Saúde, no qual a Lei Seca, em 08 anos, salvou a vida de 41.000 pessoas no Brasil, aproximadamente. O autor da legislação, Deputado Hugo Leal (PSD), ressaltou que sua principal preocupação é com a fiscalização. “Não adianta ampliar a punição e não punir. A suspensão da CNH (Carteira Nacional de Habilitação) por um ano é uma realidade, mas os estados estão cumprindo? É importante que as pessoas tenham a percepção de que a lei é aplicada. Aí, sim, haverá impactos. Se demorar muito, a aplicação da punição pode não ter o efeito que a gente deseja. Temos números relevantes sobre o impacto da lei, mas ainda não é aquém do cenário que nós queremos”, completou.
O MODELO A SER SEGUIDO
Maceió, capital do Alagoas, é a primeira cidade a alcançar a meta de redução de 50% das mortes em acidentes de trânsito estabelecida pela ONU. Detalhe: com 04 anos de antecedência. Dados apontam que o glorioso feito gerou uma economia em torno de 100 milhões de reais. De acordo com Antônio Monteiro — chefe de segurança no trânsito do Departamento Estadual de Trânsito de Alagoas —, alguns fatores foram fundamentais para o êxito: a intensificação da fiscalização por meio da Lei Seca, implantada em 2012; a definição de foco de políticas públicas nos acidentes com motos, o qual representa 40% das mortes no trânsito em Alagoas; e o Plano de Segurança Viária para Motociclistas (PSVM), que foi implantado como projeto-piloto em Arapiraca o qual contribuiu para a redução de 32% no número de mortes no Estado.
Com relação às políticas públicas, o destaque fica para os órgãos de trânsito. Renan Silva, gerente de serviços de estudos de acidentes e infrações do Detran/AL, enfatizou que a busca por menores índices de acidentes tem que ser permanente e eficaz, fazendo uso da integração de todos os órgãos de trânsito e maior consciência da população. Campanhas educativas, como Maio Amarelo (mês de atenção à vida), Semana Nacional do Trânsito (em setembro), implantação do projeto Aulão o qual melhorou a formação dos condutores, aumento da fiscalização dos Centros de Formação de Condutores (CFC) e ações em conjunto das escolas públicas e privadas são exemplos do que foi feito para atingir a meta. “Devemos reconhecer a importância das pessoas na configuração desse cenário de redução de mortes no trânsito, já que os condutores de veículos são os mais importantes agentes de transformação da triste realidade que muitos países pelo mundo enfrentam, em que 1,3 milhões de vidas humanas são perdidas e outras 50 milhões ficam seriamente comprometidas em ocorrências que poderiam ser evitadas”, concluiu Renan.
Salvador, capital da Bahia, também conseguiu atingir a meta e reduziu as mortes decorrentes de acidentes de trânsito em 51% em cinco anos. A Superintendência de Trânsito de Salvador, Transalvador, criou um setor específico para mapear os acidentes e, a partir de dados estatísticos seguros, implantou o Programa Vida no Trânsito (PVT). Houve fortalecimento da engenharia e aumento da fiscalização, além de projetos educativos. Victor Pavarino, consultor de segurança viária da Opas/OMS, declarou que Salvador conseguiu, por meio da engenharia e desenho urbano, influenciar no comportamento das pessoas. “Se você muda a pavimentação e sinalização, acaba determinando a forma como as pessoas se relacionam com o comportamento de risco, como as velocidades”, explica.
Maceió e Salvador são dois exemplos a serem seguidos. As Associações de Proteção Veicular — no uso de suas atribuições: a causa social — devem exercer importante função na busca pela tão sonhada mobilidade consciente, a começar por campanhas, dentro e fora do corpo associativo, pelas quais se alcance o objetivo de alertar a população dos riscos e malefícios da imprudência, imperícia ou negligência quando se dirige um automóvel. Não é porque os governantes deixam de fazer a parte deles que não devemos fazer a nossa parte. A intimidade da relação entre associação e associado pode ser um excelente canal para divulgação de informações voltadas a educação no trânsito. Mostrar ao associado que ele poderá pagar uma menor mensalidade, por causa da redução no número de eventos e, consequentemente, dos rateios, pode trazer bons resultados. Mãos à obra.